A verdade existe?

Status


Padre Elílio de Faria Matos Júnior
A inteligência humana está de tal modo orientada para a verdade que basta a mínima vontade de negá-la para que o homem se coloque diante de uma contradição que só pode ser superada admitindo-se a existência da verdade.
Com efeito, quem nega que a verdade existe, pretende que a sua negação seja verdadeira, o que o coloca em uma contradição performativa, isto é, o que se diz é contraditado pelo ato de dizer. O conteúdo que se pretende expressar («não existe verdade») se coloca em contradição com o ato que o expressa, pois que tal ato pretende que o referido conteúdo seja verdadeiro.
Tal contradição não se reduz simplesmente a uma mera formalidade que nada acrescentaria à seriedade do pensamento. Para muitos, essa contradição pertenceria somente ao campo da lógica pura e quase nada diria a uma opção filosófica ou a uma visão de mundo. Deveria mesmo ser deixada de lado, pois, afinal, o establishment filosófico atual, seja ele hermenêutico ou pragmático-linguístico, despediu-se da ideia de que a investigação deva ancorar-se a uma verdade fundamental. Tudo seria tão somente interpretação e um contínuo «remeter-se a», sem jamais chegar a estabelecer qualquer fundamento válido em si mesmo.
Mas, a meu ver, as coisas não são bem assim. A contradição acima revela-nos algo bem mais profundo do que, à primeira vista, seríamos capazes de ver. Na verdade, trata-se de algo que diz respeito à condição transcendental (condição de possibilidade) do pensar enquanto tal. A contradição está a mostrar que o pensamento está, transcendentalmente, orientado para a verdade em toda a sua universalidade.
Evidentemente, não falo aqui desta ou daquela verdade, mas da verdade em quanto tal, que funciona como horizonte do pensamento enquanto tal. Pensar e tender à verdade são o mesmo. Se se nega a verdade, destrói-se o pensamento em suas raízes, isto é, em sua lógica ou em sua estrutura fundamental, sem a qual o pensamento seria puro ajustamento de palavras sem sentido algum. É o que nos mostra a contradição acima.
A contradição, com efeito, mostra que o horizonte da verdade se coloca sempre num nível mais global, mais íntimo e mais abrangente do que o nível de quem deseja negá-la. A força da verdade sempre chega antes do que a vontade de negá-la materializada em um jogo de palavras sem sentido (porque leva justamente à contradição performativa) e, para quem reflete, mostra precisamente como é impossível subtrair-se-lhe. Se a verdade é negada com palavras, o pensamento deixa de existir em sua lógica, isto é, naquilo que faz do pensamento, pensamento. A negação da verdade destrói o pensamento. Por isso, não é possível «pensar» (em sentido próprio) a negação da verdade. É possível, sim, articular termos, palavras ou sons que pretendam negá-la, mas na medida em que isso se faz, o pensamento mesmo se retira e se cai no nonsense, no absurdo da contradição. Assim, o pensamento enquanto tal não pode negar a verdade. Para o inimigo da verdade só resta a possibilidade de «querer» que ela não exista. No entanto, trata-se de um querer que, separado da inteligência, é, no fundo, uma vontade do nada ou do absurdo.

O cristianismo e as religiões


religiões

A relação do cristianismo com as outras religiões é um tema a ser aprofundado hoje em dia, já que, dada a facilidade de comunicação e o encontro facilitado das diversas culturas, o pluralismo religioso torna-se, para o teólogo, um “fato teológico” a ser interpretado com base nos princípios arquitetônicos da Revelação em Cristo. Não se pode ignorar simplesmente que a maioria da humanidade não é cristã.
Duas coisas devem ser evitadas, creio. Primeiro, o relativismo fácil, segundo o qual todas as religiões gozariam, em linha de princípio, de igual validade. No fundo, seriam todas modos diversos de falar do inefável (Deus). Tal postura admite como pressuposto que Deus é tão misterioso e afastado da linguagem humana que dele os homens podem falar somente por metáforas. Cada religião seria uma “figura” de Deus, e todas, em linha de princípio, teriam o mesmo valor. Outro pressuposto dessa postura, decorrente do primeiro, é que Deus não pode revelar-se e falar aos homens de maneira positiva, como a tradição cristã acredita que fez através de Jesus Cristo. Ao contrário, a revelação de Deus seria mais complexa e menos pontual. Radicar-se-ia nas profundidades da consciência humana como um sentimento religioso inefável e se expressaria, somente de forma figurativa, através das diversas culturas. Os dogmas, nesse sentido, seriam somente metáforas do divino. A Igreja católica, de sua parte, professa firmemente que Deus falou aos homens por meio de Jesus e que a sua fala ressoa viva através da fé eclesial expressa nos dogmas formulados por meio da linguagem humana. Para a Igreja, embora a distância entre Deus e a criatura seja imensa, existe, contudo, uma analogia que permite à linguagem humana falar com propriedade do mistério de Deus dentro de certos limites.
Outra coisa a ser evitada é a postura de alguns exclusivistas, para quem fora da Igreja só existiria o vazio. A Igreja sustenta que fora de seus quadros visíveis haja elementos de verdade. Ela sabe que a plenitude de tal verdade lhe foi confiada, mas sabe também que Deus pode valer-se dos elementos de verdade presentes nas diversas religiões para santificar os seus adeptos. A pergunta que fica é: qual o papel do fato do pluralismo religioso, permitido por Deus, no plano geral da salvação? Não podemos relativizar o Cristo nem a sua Igreja, dizendo que tanto faz uma fé como outra. Mas não podemos também deixar de reconhecer que o pluralismo religioso, do qual tomamos maior consciência nos últimos tempos, coloca questões que merecem aprofundamento.

Fé e razão no pensamento ocidental: a proposta de Bento XVI


Padre Elílio de Faria Matos Júnior*

Resumo:

As relações entre fé e razão são de atualidade permanente para nossa cultura, uma vez que a civilização ocidental foi constituída a partir do encontro entre o ideal grego da razão e a acolhida da revelação judaico-cristã. Na atual conjuntura, entretanto, fé e razão andam em geral separadas, uma vez que o conceito de razão foi restringido e acomodado à racionalidade científico-técnica, e passou a negar qualquer movimento rumo ao reconhecimento de uma Transcendência real. Bento XVI propõe um alargamento do conceito de razão e de seu uso para que, reconhecendo o Transcendente, a razão possa dialogar com a fé e contribuir para o sentido da aventura humana pessoal e coletiva.

Palavras-chave: fé, razão, Transcendência, racionalidade científico-técnica

1 FILOSOFIA E TEOLOGIA: METODOLOGIA E OBJETO

Sabemos que Teologia e Filosofia são ciências distintas, quer pelo método quer pelo objeto. Enquanto a Filosofia procede por raciocínios lógicos a partir dos primeiros princípios da razão pura e tem como objeto primeiro o mundo e o homem tais como se apresentam ao estudioso pela experiência, a Teologia, por sua vez, procede a partir do ato de fé na revelação divina, procurando um certo entendimento dessa fé, e o seu objeto primeiro é o próprio Deus tal como se dá a conhecer em sua auto-revelação. Assim, a Teologia pode ser dita ciência da fé, enquanto a Filosofia é a ciência da razão.

Tal distinção, contudo, não leva necessariamente a uma separação entre as duas ciências. Aliás, ao longo da história da Igreja, pode-se verificar que Teologia e Filosofia muitas vezes se mostraram em íntima relação. Sejam citados aqui o período patrístico e escolástico, que testemunham a relação harmoniosa entre teologia e filosofia estabelecida na obra fecunda de um Santo Agostinho (†430) ou de um Santo Tomás de Aquino (†1274). Não podemos dizer, entretanto, que faltem autores na modernidade ou na contemporaneidade que procuraram correlacionar as duas ciências; sejam lembrados João de Santo Tomás, o Cardeal Cajetano, Leibniz, Jacques Maritain, Étienne Gilson, Josef Pieper, etc.

Uma pergunta surge: Por que Teologia e Filosofia, sendo distintas, podem se relacionar? Na verdade, Teologia e Filosofia podem realizar um frutífero conúbio na medida em que seu objeto coincide, ainda que parcialmente.[1] Sim; a Teologia, como já se disse, tem por objeto primeiro Deus, tal como ele mesmo se deu a conhecer pela revelação judaico-cristã; o homem e o mundo caem também sob a consideração da teologia na medida em que se relacionam com Deus ou são vistos sob a luz de Deus revelador. A Filosofia, por sua vez, como já notamos, tem como objeto primeiro de sua consideração o mundo e o homem percebidos pela experiência, mas pode chegar ao Absoluto – Deus – como fundamento radical do mundo e do homem.

Desse modo, é fácil ver que tanto a Teologia como a Filosofia tratam de Deus, do mundo e do homem. A primeira, por um movimento de descida (katabasis), vai de Deus até o homem e o mundo considerados sob a luz da fé na auto-revelação de Deus; a segunda, por um movimento de subida (anabasis), vai do mundo e do homem até Deus considerado sob a luz da razão interrogante. E é exatamente essa comunidade de objeto que torna possível a relação entre ambas.

Uma das sistematizações mais consistentes da relação entre fé e razão encontra-se na grandiosa obra de Santo Tomás de Aquino. O Aquinate viu bem que, sendo Deus, ao mesmo tempo, o criador da ordem racional e o autor da fé, não poderia haver contradição de iure entre ambas, preservadas as devidas distinções. Motivado, assim, por essa certeza, foi capaz de construir uma reflexão filosófico-teológica de invejável vigor especulativo. A grande originalidade de Tomás está no fato de ter elaborado uma metafísica do esse (do ser como ato de existir), superando, desse modo, a metafísica das essências que herdara dos gregos (VAZ, 1997, p. 283-342).

2 FÉ E RAZÃO: IMPASSE NO DIÁLOGO

Deve-se dizer que a problemática que envolve as relações entre Teologia e Filosofia ou fé e razão é de atualidade permanente em nossa cultura ocidental, pois, como sabemos, dois fatores foram constitutivos de nossa civilização: o ideal da razão manifestado na cultura grega e a vida a partir da fé apresentada pelo judeu-cristianismo. Em seu artigo Metafísica e fé cristã: uma leitura da Fides et Ratio (VAZ, 1999, p. 293-305), o filósofo jesuíta Henrique Cláudio de Lima Vaz sustenta que os eventos helênico e bíblico, abrindo para a consciência a experiência da Transcendência real, constituíram o “tempo-eixo” de nossa civilização ocidental. Foi exatamente do encontro desses dois fatores que resultou nossa cultura. Não há, pois, como simplesmente ignorar a problemática concernente à relação entre fé e razão.

Pois bem. Surge agora uma outra pergunta: Por que hoje a relação entre fé e razão, Teologia e Filosofia, encontra-se, na melhor das hipóteses, num impasse? O establishment filosófico atual pretende desenvolver sua(s) racionalidade(s) sem “contaminação” por parte da fé. Do lado da Teologia, também há reticências ao emprego da razão filosófica em seu discurso. Sabemos que a desconstrução das boas relações entre fé e razão, na verdade, teve início já no séc. XIII com a reivindicação por parte mestres da Faculdade de Artes da Universidade de Paris de uma Filosofia totalmente separada da Teologia (VAZ, 2002), o que se acentuou nos fins da Idade Média, sobretudo com Guilherme de Ockham (séc. XIV), e progrediu ao longo de toda a modernidade. O Iluminismo (séc. XVIII), considerado a “Idade da Razão”, pode ser tido como o paradigma da total separação entre as duas formas de saber, em detrimento da fé.

Mas o que, no fundo, provocou tal ruptura? O que mudou? Mudou a Teologia ou mudou a Filosofia? Por que a síntese harmoniosa entre fé e razão, buscada e defendida por espíritos vigorosos e lúcidos, deixou de ser desejada?

Para ensaiar uma resposta a esses questionamentos, permito-me reportar, mais uma vez, às reflexões de Lima Vaz. Para o filósofo jesuíta, tanto a tradição helênica quanto a bíblica perfizeram a experiência da Transcendência real. A primeira caracterizou-se pelo modelo ideonômico[2], que afirma a Transcendência real do inteligível sobre o sensível. Na segunda, a Transcendência assume a forma de Palavra de Salvação que se dirige ao homem. No primeiro caso, há, como já notamos acima, uma subida da razão finita em direção ao Transcendente; no segundo, uma descida do Transcendente, que deve ser acolhido como graça em atitude de fé. Em ambos os casos, a Transcendência permanece em infinita distância e não pode ser simplesmente “apreendida” pela razão finita. Segundo Lima Vaz, é exatamente essa comum estrutura teocêntrica da razão e da fé que possibilita uma “meta-analogia” ou um logos comum que garante o diálogo entre o logos da fé e o logos da razão.

A modernidade efetivou progressivamente uma passagem da estrutura teocêntrica para a estrutura antropocêntrica da razão, ao deixar de lado a transcendência do ser em favor da imanência do sujeito cognoscente. Houve a transposição da Transcendência real para a transcendência lógica, e o sujeito passou a ter a primazia sobre o ser. Daí ser dito que a razão moderna é essencialmente operacional, já que o operável é do domínio do lógico. Desse modo, a razão fechou-se no círculo de sua finitude, dando origem a um processo de racionalização autônomo, segundo a medida finita da mesma razão humana.

A razão antiga e medieval, tal como a podemos encontrar num Platão, num Aristóteles, num Plotino, num Agostinho, num Tomás de Aquino, possuía um caráter decididamente teológico. O adjetivo teológico aqui, evidentemente, não se refere à teologia revelada, que assume o seu discurso do ato de fé na revelação divina.[3] Por razão teológica entendemos uma certa concepção de razão, segundo a qual, o filósofo, no próprio ato do exercício filosófico, num movimento de anabasis (subida), pode deparar-se com o Princípio de todas as coisas (o divino), ainda que não o possa compreender analiticamente, já que o excesso de sua luz inteligível está para o filósofo como o sol para os olhos do morcego.[4] Lima Vaz chamou essa razão teológica de inteligência espiritual.[5] Por ela, pode-se contemplar, com o que Platão chamou o olho da alma, o Absoluto, que está para além da multiplicidade das coisas e dos conceitos, e que lhes dá verdadeiro fundamento. Não se trata de “dominar” intelectualmente o Absoluto, mas de contemplá-lo, embora por um conhecimento analógico, como terminus ad quem do processo do filosofar. Uma razão assim teológica trabalha com uma concepção analógica do ser, não unívoca. Ela reconhece a transcendência do Ser (o Absoluto) no qual o Inteligente em ato e o Inteligível em ato se identificam,[6] dando fundamento, assim, à inteligibilidade objetiva e radical de todas as coisas.[7] Ela não procura resolver a inteligibilidade radical em suas categorias finitas e limitadas ou dissecar o ser na imanência do sujeito.

Após a síntese de Tomás de Aquino, foi se dando uma passagem progressiva do ser à representação, do pólo objetivo do ser à imanência do sujeito cognoscente. Se o ser, em sua transcendência real, ocupava o centro dos mais altos esforços de especulação, que vão de Platão a Tomás de Aquino, o nominalismo dos fins da Idade Média colocou no centro a representação (ser ut nomen), resolúvel na imanência do sujeito. Descartes, considerado o pai da filosofia moderna, propõe o ponto de partida de sua reflexão filosófica em bases inteiramente imanentistas, de modo que a atenção desloca-se do ser para o sujeito cognoscente, que, trabalhando com um conceito unívoco de ser, é capaz de “domesticá-lo” segundo suas próprias medidas: isso é o que se percebe no ideal, inspirado na matemática, das idéias claras e distintas. Descartes, todavia, depois de lançar os fundamentos em bases idealistas, caminha em direção ao realismo ao reconhecer Deus como o fundamento sem o qual não seria possível o conhecimento.

O caminho do ser à representação atingiu o seu clímax em Immanuel Kant (†1804). Segundo o filósofo de Königsberg, não temos acesso à coisa em si, de tal modo que todo nosso conhecimento é o resultado da aplicação das formas a priori do Eu penso ao dado sensível. O conhecimento é, assim, construção do sujeito. O dado sensível apenas oferece uma matéria que vai ser informada pelas estruturas imanentes do sujeito cognoscente, resultando disso que o que se conhece é aquilo mesmo que o sujeito põe, ficando vedado todo acesso ao ser como tal. Temas metafísicos como Deus e a alma já não podem ser tratados pela razão teórica, pois que a pretensão de um conhecimento metafísico representa uma transgressão ilegítima da razão para fora do domínio do dado sensível.

Hegel ainda tentou recuperar o vigor metafísico da razão ao construir seu sistema como sistema do Espírito Absoluto, embora o tenha feito no clima da subjetividade, próprio da Filosofia moderna. Depois de Hegel, entretanto, qualquer tentativa de discurso metafísico foi condenado pelo establishment filosófico ao nonsense. A metafísica foi simplesmente banida como espúria e ilegítima. E a Filosofia como que se reduziu a uma ciência entre as outras.

A razão assim entendida, a razão que se resolve apenas na imanência do sujeito sem se abrir à transcendência do ser e, consequentemente, à Transcendência real, não oferece possibilidade da circulação de um logos comum entre razão e fé. Desse modo, o diálogo entre as ambas atinge, não propriamente um impasse, mas a exaustão (VAZ, 1999, p. 302).

Sim; a concepção de razão, no arco histórico que vai do ser à representação, restringiu-se de tal maneira que o racional passou a ser considerado apenas o que pode ser enquadrado nos limites da razão humana finita, o que pode ser medido pela inteligência finita, o quantificável. Com acerto, Lima Vaz fala de uma transposição da Transcendência real para a transcendência lógica. A razão esqueceu-se de sua abertura para o infinito, para o Ser em sua alteridade, e ficou presa nos limites da finitude, restando-lhe apenas lidar com os fenômenos, sem conseguir lançar o olhar para o fundamento.

Ora, só uma razão aberta para o ser pode dialogar com a fé. Uma razão fechada no círculo de sua finitude é incapaz de lançar-se para o Princípio e garantir aquela “meta-analogia” entre fé e razão de que fala Lima Vaz. Em outras palavras: sem a consideração da Transcendência real, a fé e a razão não podem encontrar o elemento que garanta a base do diálogo entre ambas.

3 A PROPOSTA DE BENTO XVI

Bento XVI, em diversas ocasiões, mostrou sua preocupação pelo destino da Europa e, por conseguinte, da civilização ocidental, cujas bases constitutivas são, como dissemos, a fé cristã e o ideal grego da vida segundo a razão. Nossa cultura atual, ao optar por uma razão que não ousa mais encarar o ser, coloca em xeque suas raízes mais profundas. Nesse sentido, vivemos uma crise de identidade, isto é, um momento agudo que exige de nós uma decisão: Que civilização queremos? Mostraremos ser fiéis às nossas raízes? Ou continuaremos a buscar uma civilização que, por se submeter totalmente a uma concepção estreita de razão, talvez pudesse ser chamada de “civilização da técnica”? Sim; a razão fechada à infinita transcendência do ser acaba por reduzir-se a uma razão técnica, operacional; uma razão que não ousa considerar sua abertura ao transcendente facilmente mostra a pretensão de tudo submeter à “domesticação” do sujeito, erigindo, assim, um mundo “feito” segundo as medidas do eu humano.

Pode-se dizer que, para sermos fiéis às nossas raízes, é preciso que nos proponhamos a alargar nossa concepção de razão, o que equivale a adotar o uso da razão que vigorou em espíritos brilhantes como Platão, Aristóteles, Plotino, Agostinho, Tomás de Aquino… Não se trata aqui de uma volta ao passado. A história segue adiante. Trata-se, antes de tudo, de mostrar fidelidade às exigências mais profundas do ser humano como tal. Fechar ao homem a abertura para a infinita transcendência do ser querendo reduzi-lo ao mundo dos fenômenos, equivale a truncar-lhe a natureza. A fidelidade às nossas raízes greco-cristãs não se reduz a mera fidelidade histórico-cultural, mas deve ser entendida como fidelidade ao homem mesmo, cuja essência, aberta à consideração das razões do ser e do viver, mostra-se capaz de elevar-se aos píncaros da vida intelectual pelo reconhecimento da Transcendência real e, ao mesmo tempo, capaz de acolher na fé a Palavra de Salvação que a generosidade divina lhe dirige.

Em sua famosa Aula Magna na Universidade de Regensburg, em setembro de 2006, intitulada Fé, razão e universidade: recordações e reflexões[8], Bento XVI tratou de temas fundamentais para a questão da relação entre fé e razão e do futuro de nossa civilização. O Papa afirmou decididamente que a fé cristã não é alheia à razão, isto é, não pode se reduzir à irracionalidade. E sustentou que as melhores conquistas da filosofia grega em sua luta contra mito pertencem intrinsecamente à fé cristã. O encontro entre pensamento grego em sua melhor parte e a fé cristã não pode ser visto como uma simples contingência histórica, uma vez que o Deus da Bíblia é Logos, de modo que buscar exercitar a razão e procurar viver segundo seus ditames está em profunda sintonia com a fé no Deus que é Ele mesmo Inteligência absoluta. Assim, Bento XVI sentiu-se muito à vontade para citar o imperador Miguel II Paleólogo, segundo o qual não agir com a razão é agir contra a natureza de Deus. Essa afirmação é fundamental e decisiva para as questões que estamos considerando.

Ao contrário de muitos discursos teológicos que cheiram a fideísmo e de muitas filosofias voluntaristas[9] e agnósticas, Bento XVI diz claramente que a Tradição da Igreja posiciona-se do lado da razão, isto é, de uma razão capaz de dizer algo de Deus e, assim, colocar-se em sintonia com a fé. Entre o homem, criatura racional, e Deus, que é Logos, existe uma analogia. Embora as diferenças entre os dois sejam infinitamente maiores do que as semelhanças, não há separação total. Vejamos as palavras do Papa:

“[…] a fé da Igreja sempre se ateve à convicção de que entre Deus e nós, entre o seu eterno Espírito criador e nossa razão criada, existe uma verdadeira analogia, na qual, por certo – como afirma, em 1215, o IV Concílio de Latrão – as diferenças são infinitamente maiores que as semelhanças, mas não até o ponto de abolir a analogia e sua linguagem”.[10]

A fé, para ser ela mesma, segundo Bento XVI, não precisa lançar fora a razão. Muito ao contrário, pertence à natureza mesma da fé cristã o conúbio com a razão, pois que agir irracionalmente é agir contra a natureza de Deus. Nesse mesmo sentido, a encíclica Spe Salvi afirma: “Sem dúvida, a razão é o grande dom de Deus ao homem, e a vitória da razão sobre a irracionalidade é também um objetivo da fé cristã” (n. 23).

Mas de que razão o Papa fala? Que razão pode, de fato, estabelecer relações amigáveis e harmoniosas com a fé? Certamente não é a razão que se tornou apenas um instrumental lógico destinado à manipulação dos fenômenos; não é a razão que, esquecendo-se de seu fundamento, fechou-se na imanência do sujeito em sua transcendência puramente lógica. Em outras palavras, não é o modelo restrito de razão que tem vigorado na modernidade, que faz das ciências empiriológicas a última palavra em termos de racionalidade, que poderá constituir um diálogo frutuoso com a fé. O Papa nota que esse modelo restrito, que fez sucesso pelas conquistas científico-técnicas, é uma síntese entre platonismo ou cartesianismo e empirismo, uma vez que professa a inteligibilidade da matéria com suas leis (platonismo ou cartesianismo) e, ao mesmo tempo, fecha-se na “utilização funcional da natureza para nossas finalidades, onde só a possibilidade de controlar verdade ou falsidade através da experiência é que fornece a certeza definitiva”[11] (empirismo).

Com essa racionalidade restrita, os horizontes da vida se tornam por demais estreitos, e o próprio homem é que se vê ameaçado em sua constituição fundamental. As grandes questões humanas – De onde vim? Para onde vou? O que devo fazer? -, decisivas para o sentido da vida, simplesmente não têm lugar no âmbito de uma racionalidade que se curva sobre a própria finitude, esquecendo-se de sua abertura para a infinitude do ser. A “ciência” fica, assim, restrita ao mundo dos fenômenos, e vê como ilegítima toda tentativa de ultrapassagem, de meta-física. Mas “se a ciência no seu conjunto é apenas isto, desse modo então o próprio homem sofre uma redução”.[12] É a concepção de homem que está em jogo. Que é o homem?

O que, então, propõe Bento XVI? Não propõe com certeza uma volta ou uma rejeição da modernidade, pois que “tudo o que é válido no desenvolvimento moderno do espírito há de ser reconhecido sem reservas: todos nos sentimos agradecidos pelas grandiosas possibilidades que isso abriu ao homem e pelos progressos que foram proporcionados no campo humano”.[13]

Na verdade, Bento XVI tem em vista não uma retirada, não uma crítica negativa. Sua proposta é deveras positiva, e consiste num “alargamento do nosso conceito de razão e do seu uso”.[14] Aqui está o ponto nevrálgico de toda a problemática. Não havíamos constatado que a concepção de razão tem sofrido, já desde os fins da Idade Média, uma redução?

O Papa, na verdade, não pede uma coisa absurda. Deseja simplesmente que a razão tenha também em consideração a busca da sabedoria. A razão, segundo o Papa, não deveria nunca deixar de exercer sua dimensão sapiencial. E que é essa dimensão sapiencial? É a capacidade da razão de ousar passar dos fenômenos ao fundamento, como, aliás, já fizera notar o Papa João Paulo II em sua grande Encíclica Fides et Ratio. Bento XVI propõe, assim, abertura e alargamento contra o fechamento e a estreiteza. Deseja uma ultrapassagem dessa limitação auto-decretada na modernidade. Ora, essa proposta do Papa está em consonância com a vocação originária da Filosofia, que, em seus albores, entendia-se como uma verdadeira busca da sabedoria, a busca de uma visão básica do sentido das coisas, uma cosmovisão que, inclusive, portava orientações éticas.

Aliás, as ciências empiriológicas, que têm tido um grande sucesso no descobrir as leis que regem a matéria, colocam uma questão que nos convida a ir além das próprias ciências: Por que as leis da matéria apresentam uma simetria com a inteligência humana? Qual a razão da inteligibilidade mesma das leis que regem o comportamento da matéria? Tal questão levará, sem dúvida, o pensador a ver que só uma Inteligência absoluta (esta é a “hipótese” melhor), causa transcendental tanto da inteligência humana como da matéria, pode garantir essa simetria inteligível entre o espírito humano interrogante e a matéria com suas leis.

4 A MODO DE CONCLUSÃO:  QUE CIVILIZAÇÃO QUEREMOS?

A crise por que passa hoje nossa civilização consiste exatamente em rejeitar a Transcendência e colocar o homem como fundamento de todas as coisas. A razão humana, que deveria se abrir para sua fonte transcendente fecha-se em si mesma e constrói a partir de sua própria finitude. Sem seu fundamento, isto é, sem Deus, a razão não pode ser ela mesma; torna-se uma sua caricatura. Trata-se de uma verdadeira crise, pois que implica uma mudança radical de orientação, uma nova concepção de homem, uma nova visão da vida. E é preocupante, dado que, se não há um fundamento maior que o homem, este pode arvorar-se em supremo árbitro e pretender impor a seus semelhantes ideologias que bem refletem a sua sede de poder ou a parcialidade de sua visão. Os totalitarismos do séc. XX, tanto de esquerda como de direita, são uma amostra do que é capaz o homem sem Deus.

Sem uma medida transcendente que as oriente, nossas sociedades ocidentais têm feito da moral uma questão de pura convenção, em que o certo e o errado são decididos segundo os interesses. “Se Deus não existe e a alma é mortal, tudo é permitido”, já constatava o personagem de Dostoievski em Irmãos Karamazov. Resta a pergunta decisiva e comprometedora: Que civilização queremos?

Estamos, com efeito, diante de uma encruzilhada. É preciso escolher o caminho a seguir. Qual será nossa opção? A resposta dependerá do tipo de civilização que queremos. Desejamos aprofundar o caminho de estreitamento da razão? Como quer que seja, uma coisa deverá ser dita: se nossa razão não for alargada, como sugere Bento XVI, certamente nossa civilização caminhará rumo a um anti-humanismo imperdoável, uma vez que tirará do homem a sua mais nobre expressão: a busca do Infinito e do Absoluto, do Bem e do Belo.


* É padre da Arquidiocese de Juiz de Fora / Mestrando em Filosofia pela FAJE (Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia), Belo Horizonte, MG

[1] Digo “ainda que parcialmente” porque a Filosofia, embora possa tratar de Deus, não o considera, contudo, como a Teologia. A Filosofia chega a Deus como causa transcendental do mundo e do homem, e não alcança a vida íntima de Deus, o que só se pode atingir, ainda que dentro dos limites da linguagem humana, pela Teologia, que parte da fé naquilo que Deus mesmo deu a conhecer de si, como, por exemplo, a Trindade das Pessoas Divinas.

[2] Esse termo pode ser entendido como característico do modelo filosófico em que o universo é explicado pela força unificadora do inteligível, que, por sua vez, não se reduz à imanência do sujeito cognoscente.

[3] “Sic igitur theologia, sive scientia divina, est duplex. Una… est theologia quam philosophi prosequuntur quae alio nomine metaphysica dicitur; alia vero… est theologia, que in sacra Scriptura traditur” (TOMÁS DE AQUINO. In Librum Boethii de Trinitate, q. 5, a. 4).

[4] Citando Aristóteles, Tomás de Aquino realça esta verdade: “O nosso intelecto está para as primeiras noções dos seres, que em si mesmas são evidentíssimas, como os olhos do morcego para o sol” (Summa contra gentiles, I, c. III).

[5] Cf. VAZ, 1991, p. 239-289.

[6] Veja o que diz Tomás de Aquino, apontando Deus como a realização plena da coincidência entre inteligente e inteligível em ato: “Efetivamente, a intelecção é ato do sujeito inteligente, nele existindo, e que não se transmite a uma coisa extrínseca, como acontece com o aquecimento, o qual se transmite ao que é aquecido. Assim, o objeto da intelecção não recebe coisa alguma por ser apreendido, mas o sujeito inteligente é que é aperfeiçoado. Ora, tudo que está em Deus identifica-se com sua essência. Logo, a intelecção de Deus é a própria essência divina, o ser divino e o próprio Deus, já que Deus é sua essência e seu ser (como foi provado)” (Summa contra gentiles, I, c. XLV).

[7] Eis um texto esclarecedor de Pierre Secondi sobre a inteligibilidade das coisas, inteligibilidade que, em última análise, funda-se na identidade, no Ser infinito, do inteligente e do inteligível: “Há muito tempo que Aristóteles justificou esta relação matéria-espírito: se a inteligência procura o espírito nas coisas mais comuns é porque ela sabe que o espírito se encontra nelas, porque tudo o que existe é a realizaão de uma idéia. Uma mesa não seria o que ele é se o carpinteiro não tivesse na cabeça a idéia de mesa, qualquer que seja a matéria utilizada. Se me permitem uma comparação belicista, a inteligência funciona como a ogiva dos novos mísseis que sabe onde está o seu alvo e como penetrar no íntimo dele. Longe de estar em oposição, matéria e espírito coincidem nas realidades. O que o filósofo chama de ordem real e ordem ideal é correlativo, segundo a fórmula um tanto solene de nossos mestres: Tudo o que existe é pensável, tudo o que é pensável pode existir; inversamente, o que é impossível nas coisas reais, um círculo quadrado por exemplo, é impossível no espírito” (SECONDI, 1992, p. 24).

[8] BENTO XVI, Sumo Pontífice. Carta Encíclica “Spe Salvi”. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, c2007. Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20071130_spe-salvi_po.html. Acesso em: 11 mar. 2009

[9] Por “filosofias voluntaristas” entendem-se os discursos filosóficos que colocam no fundamento do ser a vontade distante ou dissociada da inteligência, o que acaba por levar ao irracionalismo.

[10] BENTO XVI, Sumo Pontífice. Carta Encíclica “Spe Salvi”. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, c2007. Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20071130_spe-salvi_po.html. Acesso em: 11 mar. 2009.

[11] BENTO XVI, Sumo Pontífice. Carta Encíclica “Spe Salvi”. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, c2007. Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20071130_spe-salvi_po.html. Acesso em: 11 mar. 2009

[12] Ibidem.

[13] Ibidem.

[14] Ibidem.

O homem acompanhado ou o homem só?


Trava-se na atualidade uma grande luta que diz respeito a autocompreensão do homem. Qual o sentido da vida? Quais os valores que se devem abraçar? Pode-se alcançar a verdade? O que posso esperar? A semelhança dessas perguntas com as que Immanuel Kant já colocara no século XVIII não é mera coincidência. Com efeito, estamos diante de questões, por assim dizer, “eternas”. São as grandes questões fundamentais que acompanham o homem, em todo tempo e espaço, desde o despertar de sua consciência.

A luta que atualmente se trava em torno dessas questões nos arremete para o plano do real ou da constituição da realidade. O que é verdadeiramente real? Qual a estrutura básica da realidade? Em suma, o que é a realidade? Quer queiramos ou não, é a estrutura da realidade que define, objetiva e fundamentalmente, a verdade sobre nós mesmos. Uma vez que fazemos parte do Ser, o sentido da nossa vida só pode ser revelado a partir do Ser.

Já os filósofos gregos se debatiam para fazer ver o fator determinante da realidade e, com isso, alcançar uma cosmovisão, que, inclusive, trouxesse uma orientação ética. Dois nomes que se opõem surgem na aurora do pensamento filosófico e alcançam um status paradigmático. O que vem depois deles está, fundamentalmente, na linha de continuidade de um ou de outro. Trata-se de Protágoras e de Platão. Pode-se mesmo dizer que toda a história do pensamento ocidental divide-se em partidários de Protágoras e partidários de Platão.

Protágoras é conhecido pelo seu relativismo universal. Com efeito, rejeitando um ponto de apoio inconcusso, fez o sentido das coisas depender do homem e da volubilidade humana. “O homem é a medida de todas as coisas, das que são, enquanto são; das que não são, enquanto não são” – ensina Protágoras. O homem é o criador do sentido. Cria-se a si mesmo e o seu mundo. O que a coisa é em si mesma não interessa; é inacessível. O que importa é o que o homem pensa ou diz sobre a coisa. Tudo depende do homem, inclusive Deus. A realidade, no fundo, é o homem.

Ponto de vista diverso é o de Platão. Sua filosofia resultou de um esforço árduo, já iniciado por seu mestre Sócrates, que tinha por objetivo superar o ceticismo sofístico. Platão chegou a reconhecer que o homem não é a medida, mas é medido por uma Realidade absoluta. Ele não é a fonte do sentido, mas apenas participa dela. Santo Agostinho, herdeiro, em certo sentido, das intuições platônicas básicas, dirá que existe um cânon absoluto da verdade em virtude do qual a razão julga todas as coisas, uma luz eterna a partir da qual a inteligência vê. Nesse sentido, não é o homem, mas a Realidade a medida de todas as coisas. E a Realidade, para Platão, é distinta do mutável e do passageiro. Ela repousa em si mesma, em sua estabilidade e autotransparência; pura luminosidade!

A Civilização Ocidental, ao longo de seu percurso histórico, tem feito fundamentalmente a opção por Platão contra Protágoras. Entretanto, nos últimos dois séculos, essa opção tem sido ameaçada por pensadores que proclamam o fim do platonismo – entenda-se, o fim da metafísica. O que vemos é que estamos mergulhados no presente numa crise que diz respeito, em última análise, ao passado e ao futuro de nossa civilização. Protágoras ou Platão? Para o futuro, somos impelidos a fazer uma escolha. Não escolher é já escolher. Qual é a medida? Deus ou o homem? Mas Deus, se é Deus, não pode fazer concorrência com o homem. Assim, nossa questão ficaria melhor nestes termos: O homem com Deus ou o homem sem Deus? O homem acompanhado ou o homem só? O homem participante do ser ou o homem dominador do ser?

Sem dúvida, forças poderosas tentam virar o curso da opção que nossa Civilização Ocidental tem feito por Platão. Mas conseguirá? Poderá o homem viver só? E se a relação de transcendência for constitutiva de seu ser? A nosso ver, parece pouco provável, apesar das crises e incertezas atuais, que o homem queira se sustentar só. A medida do Ser e a luz que dele promana ainda são maiores do que as pretensões titânicas de um homem que quer ser a única fonte de sentido. Com razão dizia Péguy: “On ne dépasse pas Platon”.

Padre Elílio de Faria Matos Júnior

 

Cultivar nossa humanidade


Desde o advento da ciência moderna no séc. XVII, que, não se pode negar, trouxe muitos benefícios para a humanidade, vivemos no contínuo perigo de nos deixar arrastar pela sensação de que tudo podemos, de que o homem é o único criador de si mesmo e de seu mundo. É verdade que essa sensação de onipotência foi contraditada sobretudo pelas duas grandes guerras do séc. XX, que mostraram com intensidade o seu poder destruidor. O homem que acreditava cegamente na ideologia iluminista do progresso irrevogável acabou por confrontar-se com seus limites, de modo especial com os limites que traz dentro de si, porque o homem não é somente capaz do bem; é também capaz do mal. Não é só criador, mas é também destruidor. E, nesse sentido, deve continuamente buscar forças que o purifiquem, afastando-o do mal e encaminhando-o para o bem.

Como quer que seja, o grande legado da revolução científica é a produção e o consumo de bens, o que coloca o mundo num dinamismo tal que a vida passa a ser regida fundamentalmente pelos interesses de mercado e a ser regulada pelo ativismo inerente a essa situação. Diz-se hoje em dia que o tempo passa depressa, mas, creio, não é o tempo que mudou o seu ritmo, e sim o homem que alterou sua percepção do tempo. Dificilmente, o homem moderno tira um tempo para estar a sós consigo mesmo, para cultivar verdadeiras amizades, para contemplar a essência das coisas ou para cultivar o senso de transcendência que marca fundamentalmente a nossa humanidade. O tempo do homem de hoje se despende, sem ser fruído, no corre-corre do mundo da técnica e do capital. O homem atual é como que devorado pelo tempo que ele mesmo estabeleceu para si.

Mesmo um papa poderia cair na tentação do ativismo reinante. É curioso que Bento XVI, no seu livro-entrevista Luz do mundo, reconheça que o papa deve esforçar-se para não ceder e não achar que deva “trabalhar sem interrupção”. Diz o papa: “Não perder-se no ativismo significa manter a circunspecção, a penetração clarividente, a visão, o tempo da ponderação interior, do ver e tratar com as coisas, com Deus e sobre Deus. Não pensar que se deva trabalhar sem interrupção é importante para todos; por exemplo, para aquele que gerencia uma empresa, e tanto mais para um papa. Deve-se deixar muitas coisas nas mãos de outros para conservar a visão interior do conjunto, o recolhimento, do qual pode vir a visão do essencial.”

Saibamos cultivar melhor nossa humanidade e teremos abundância de vida.

Padre Elílio de Faria Matos Júnior

Ciências e ateísmo


Richard Dawkins, biólogo inglês, é hoje um dos grandes nomes do ateísmo militante. Sua defesa do ateísmo pretende ter por fundamento sobretudo as ciências naturais, notadamente a biologia. Sustenta, em linhas gerais, que o mundo, tal como as ciências naturais o consideram, basta-se a si mesmo, e tudo o que nele há de diversificado e maravilhoso é resultado do dinamismo do próprio mundo posto em movimento.

Entretanto, cabe uma pergunta: será possível abraçar a doutrina ateia a partir das ciências naturais? Para ser direto, devo dizer: as ciências naturais, de si, não nos permitem nem afirmar nem negar a existência de Deus. Sim, essas ciências têm uma metodologia e estatuto próprios que lhes dão competência em uma área determinada da realidade, mas que também lhe tiram a competência para outras dimensões do saber. Elas podem alcançar certa dimensão da realidade, mas não a realidade toda. As ciências que têm por objeto a realidade como um todo são a filosofia e a teologia; esta baseada na fé na Revelação divina, e aquela na aplicação dos princípios racionais. Ora, a questão da existência de Deus diz respeito ao todo da realidade. O que é o real? É só a matéria? O que é a matéria? Para além da matéria existe algo? Só quem tem uma visão do todo pode dizer se Deus existe ou não. Essa tarefa, portanto, se é possível executá-la, cabe à filosofia ou à teologia, únicas ciências que pretendem encarar a realidade como um todo.

As diversas ciências naturais, inclusive a biologia, ciência na qual Dawkins é versado, estão restritas ao mundo material, que é o seu pressuposto inquestionável, sem perguntar se para além desse mundo existe um outro, de natureza diversa. Essas ciências, uma vez admitido como pressuposto óbvio o mundo material, querem saber como esse mundo se comporta, como os diversos fenômenos naturais podem ser explicados, quais as relações entre causa e efeito, etc. Mas tudo restrito ao âmbito desse mesmo mundo. Sendo assim, todas as vezes que um cientista natural – físico, biólogo, etc – levanta uma questão sobre Deus, sobre o princípio radical do mundo (se é eterno ou não), ou sobre se este mundo visível é o único existente, ou ainda sobre se há ou não um sentido para as coisas e a vida humana; quando, pois, levanta questões assim, o cientista, na verdade, extrapola o âmbito da sua ciência natural e passa a colocar questões filosóficas ou teológicas. Ele, então, já não fala em nome da sua ciência natural. Passa a falar como filósofo ou teólogo sem, às vezes, ter adquirido competência para tal.

Ao descrever os fenômenos da natureza, suas causas e relações mútuas, as ciências naturais não pretendem tirar o véu do sentido radical do mundo. A descrição que fazem pode ser compatível com diversas cosmovisões. No âmbito dessas ciências, se se quer respeitar seu estatuto epistemológico próprio, não se pode decidir pelo teísmo, deísmo, agnosticismo ou ateísmo. É preciso lançar mão de um outro nível de conhecimento, uma visão filosófica ou teológica, para alcançar a decisão sobre o sentido da realidade como um todo.As ciências naturais podem até apresentar indícios de que o mundo é fruto de uma Inteligência ordenadora e um Poder criador e conservador superior, mas, por si mesmas, nunca poderão dar o veredicto final sobre a existência ou não dessa Inteligência ou Poder. Ou podem insinuar que o mundo se baste a si mesmo e que, malgrado a ordem e as maravilhas que podem ser percebidas na natureza, a origem das diversas coisas e das diversas espécies vivas tenham sua razão de ser no próprio interior do mundo, cujo dinamismo, através do acaso e da necessidade, é o “relojoeiro cego” (Dawkins) que fabrica “relógios” maravilhosos. Mas, repito, não podem decidir, por si mesmas, se o mundo realmente se basta a si mesmo ou se a origem mundana das coisas requer ou não uma origem anterior, não mundana.

Em síntese, as ciências podem explicar o como e os porquês mais imediatos dos fenômenos do mundo, mas não têm competência para responder à questão do porquê radical. Veja-se o que diz o ex-ateu Alister MacGrath, com doutorado em biofísica molecular:

“As teorias científicas não podem ser tomadas para ‘explicar o mundo’, mas apenas para explicar os fenômenos observados no mundo. Além disso, argumentam os autores, as teorias científicas não descrevem e explicam tudo sobre o mundo, e nem pretendem fazê-lo – conforme suas propostas” (McGRATH, Alister; McGRATH, Joanna. O delírio de Dawkins. Uma resposta ao fundamentalismo ateísta de Richard Dawkins. Mundo Cristão: São Paulo, 2007, p. 53).

O que Dawkins não entendeu é exatamente isso. Não compreendeu os limites próprios do discurso científico, e quis fundamentar na biologia sua tese metafísica (filosófica) ateísta. A tese metafísica de Dawkins sobre a não existência de Deus deve ser debatida no âmbito da filosofia (não digo da teologia porque Dawkins não tem fé, e a teologia a exige como pressuposto), não das ciências naturais.

Ora, Dawkins, até hoje, não apresentou nenhum discurso propriamente filosófico para demonstrar que Deus não existe ou para demonstrar que a realidade visível é a única realidade. As pseudo-refutações que faz das “vias” tomistas (argumentos que pretendem demonstrar a existência do Absoluto distinto do mundo), em seu livro Deus: um delírio, mostram, a meu ver, que não compreendeu a natureza dos argumentos. Mas isso já é um outro assunto, do qual pretendo tratar depois neste blog. Aguardamos ainda de Dawkins, se é que isso é possível, um discurso verdadeiramente filosófico que ateste seu ateísmo. Seu discurso simplesmente não convence.

Padre Elílio

O cristão Ratzinger e o ateu Flores D’Arcais


Sobre o livro: RATZINGER, Joseph; D’ARCAIS, Paolo Flores. Deus existe? São Paulo: Planeta, 2009.

De um lado, temos Joseph Ratzinger; de outro, Paolo Flores d’Arcais. São duas posições distintas sobre a natureza e o papel do Cristianismo e também sobre a natureza e o papel da razão humana. Os dois até chegam a admitir que possa e mesmo deva existir uma colaboração, no que diz respeito aos valores humanos mais básicos, entre cristão e não cristão, entre crente e não crente. Admitem, assim, um campo de valores comuns a todos os homens. O simples fato de sermos homens coloca-nos a todos no âmbito comum de uma ampla gama de valores humanos, como a justiça, a honestidade, a solidariedade, a sinceridade, etc.

Entretanto, esse acordo de primeiro nível entre Ratzinger e Flores d’Arcais, embora importantíssimo para a convivência e a construção de uma sociedade digna do homem, é, a meu ver, muito frágil, pois um pensador está a quilômetros de distância de outro no que diz respeito à fundamentação de seu discurso. A fundamentação que Ratzinger dá aos valores fundamentais da convivência humana é transcendente, isto é, está para além de uma mera decisão humana; não se reduz a uma questão apenas pragmática e de organização da vida social. Ratzinger está convicto de que a ordem das coisas mesmas apresenta uma orientação moral. O Logos, por assim dizer, manifesta-se no mundo e no homem, e este, ao reconhecer a luz da verdade, é capaz de se deixar guiar por um sentido que não é simplesmente uma construção sua. Deus, que é a Razão universal, imprimiu na criação a sua marca, de modo que não nos encontramos à deriva no mar da vida. A criação fala de Deus e do sentido da vida, sentido que tem em Deus sua fonte e sua base derradeira.

Já Flores d’Arcais não vê nenhuma orientação moral ou sentido para a vida humana que não seja fruto do homem mesmo, de sua própria capacidade de pensar e organizar o mundo. “A norma, o dever-ser (Sollen) não existe na natureza”[1], diz. E ainda: “O homem é, pois, o senhor e o criador da norma”[2]. Flores d’Arcais é partidário da teoria da evolução, e vê no homem, à semelhança de Monod, um resultado ou ponto de chegada do dinamismo do próprio mundo, cujas novidades advêm do acaso e da necessidade: “Sucessivos erros na duplicação do DNA de um símio, repetidos por acaso várias vezes sem resultados ‘fatídicos’, finalmente deram vida à sobrevivência de um cérebro anômalo, capaz de estar no mundo e fazer-se perguntas […]”[3]. Para o filósofo ateu, as normas são revestidas pelo homem de um valor transcendente porque este sente que não pode suportar o peso de ser o único criador de si mesmo.

Estamos, portanto, diante de duas posições fundamentalmente incompatíveis. Trata-se, na verdade, de um dilema: Ou Deus é a medida de todas as coisas, inclusive do homem; ou o homem é que é a medida de todas as coisas, inclusive de Deus. Na Antiguidade, o grande Platão enfrentou o mesmo dilema, decidindo-se pela medida transcendente, contra o relativismo universal de Protágoras. A ideia transcendente e divina é a medida, reconhecia Platão, não o homem, que não cria a verdade, mas a recebe. Platão combateu vigorosamente o relativismo, que tudo faz depender do homem e das suas mutáveis disposições. O mesmo dilema – medida transcendente ou imanente? – foi poderosamente sintetizado, no século passado, pelas palavras de Claude-Lévi Strauss: “Ou o homem está no sentido ou o sentido está no homem. No primeiro caso, a interpretação religiosa. No segundo, a interpretação materialista”.

Flores d’Arcais invoca a tradição cética e ateia, que se desdobra a partir do Iluminismo, na qual se inclui, para sustentar que as grandes questões levantadas contra o teísmo de modo geral e o cristianismo de modo particular ainda não foram suficientemente consideradas pelos teístas e cristãos nem muito menos respondidas. Os grandes nomes, frequentemente invocados, que, segundo Flores d’Arcais, representam a tradição cética são Hume, Freud, Monod. Kant também é mencionado, na medida em que defende a incapacidade metafísica da razão. Para Flores d’Arcais, a razão é impotente para além do domínio empírico. As suas pretensas construções metafísicas são quimeras, consoante Hume e Kant. O mal é um escândalo e depõe poderosamente contra a existência de um Deus bondoso e onipotente. O mundo, como mostra Monod, é o resultado do acaso e da necessidade. O sentido da vida não existe independentemente do homem. Entretanto, pondera Flores d’Arcais, a rejeição da ilusão de Deus não acarreta que estejamos obrigados a abraçar o nada ou a cair no vazio. A alternativa a Deus não é o nada, mas o ente finito, a existência limitada. Devemos reconhecer-nos em nossa situação real: seres finitos entre seres finitos. Lidar com a finitude, saber lidar com ela, sem criar fantasias que tirem o valor do finito, a única realidade: eis nosso desafio.

Flores d’Arcais, na verdade, insere-se na fileira daqueles pensadores que limitam a competência da razão ao finito. O protótipo de racionalidade, para Flores, é a racionalidade científica. A verdade científica paira sobre as ilusões e os pios desejos (whisful thinking) da metafísica (que seria uma espécie de arte para aqueles que não têm dons artísticos). Ainda que Flores não tenha uma visão dogmática sobre a verdade – define a verdade como “a mais certa das práticas humanas ou a menos incerta” -, fica claro que para ele não há verdade fora do âmbito do que podemos experimentar. O “mais certo” ou “o menos incerto” está no âmbito da experiência empírica, fora do qual só há pios desejos e antinomias insolúveis.

A grande recriminação que Flores lança à religião em geral e ao cristianismo em particular é que a religião e o Cristianismo tem privilegiado o diálogo com filosofias que não colocam a questão decisiva da verdade. A religião, assim, abstendo-se de enfrentar a questão da verdade de seus ensinamentos, torna-se apenas um consolo para a alma. As filosofias hermenêuticas, com as quais a religião tem dialogado, não colocam a questão da verdade, o que acaba por reduzir a religião a uma função apenas: dar sentido à vida. Mas e a verdade da religião? “Uma religião do sentido (e não da verdade) é uma religião que já não é de pessoas, e sim de meros ‘consumidores’ (de sentido)”[4].

A posição de Joseph Ratzinger sobre a competência da razão e a natureza do Cristianismo é bem outra. Na verdade, o teólogo alemão vê o Cristianismo como a religião, não só da fé, mas também da razão. Nesse sentido, Ratzinger não se contenta com um diálogo entre Cristianismo e filosofia que considere apenas a funcionalidade da religião. Ele, com efeito, está interessado, na verdade do Cristianismo. Nesse sentido, não se enquadra na recriminação de Flores d’Arcais. Flores certamente não concorda com dizer que o Cristianismo seja também a religião da razão, mas não pode dizer que Ratzinger não enfrenta a questão realmente decisiva, a da verdade do Cristianismo.

Ratzinger sustenta que, desde seus primórdios, o Cristianismo apresentou-se com uma grande pretensão: a de ser a síntese entre fé e razão. Na Antiguidade grega, fé e razão andavam separadas. De um lado, a religião resolvia-se ou nos mitos, cujo conteúdo aos poucos foi sendo cada vez mais ridicularizado (theologia mythica sive poëtica), ou na utilidade pública, pois o Estado valia-se da fé para garantir a coesão social (theologia civilis). A verdade simplesmente não interessava à religião. De outro lado, a busca pela verdadeira natureza de Deus (theologia physica) não estava marcada por uma atitude autenticamente religiosa. Os filósofos, com efeito, buscavam a verdade sobre o divino, mas o Deus encontrado por eles era o apenas o Princípio explicativo do mundo. A tal Princípio não se podia rezar. Ratzinger vê, desse modo, na Antiguidade, uma dramática separação entre atitude religiosa e interesse pela verdade.

O Cristianismo irrompeu nesse contexto com uma pretensão bem ousada, e tal pretensão convenceu, garantindo, humanamente falando, sua vitória sobre o mundo das religiões. Qual a pretensão com a qual o Cristianismo se apresentou? A pretensão de ser a religio vera, a de unir fé, adoração, devoção, de um lado; e, de outro, razão e verdade. Interessante notar que, na Antiguidade, o Cristianismo colocou-se ao lado da filosofia, não das religiões. A filosofia exerceu um papel crítico em relação às religiões, no sentido de purificá-las das ilusões sobre a divindade (lembremo-nos de Xenófanes, Sócrates, Platão). Esse “Iluminismo”, encetado pela filosofia no mundo grego, irrompeu a seu modo também em Israel. Enquanto na Grécia os filósofos criticavam a mentira dos mitos, em Israel os profetas criticavam o vazio dos falsos deuses. O Cristianismo, herdeiro da fé de Israel, insere-se assim no caminho da crítica ao mundo das religiões e já bem cedo tem consciência de que a filosofia, não as religiões, é, de algum modo, a sua aliada.

Devoção e razão, duas necessidades humanas, não estão mais separadas. O Cristianismo operou, assim, uma “suprassunção” entre as duas grandezas atingindo uma síntese nova e mais conforme ao espírito e às exigências humanas. Ratzinger enfatiza também que a ética do amor – caritas – foi outro importantíssimo elemento que o Cristianismo incorporou à sua síntese. O Deus cristão é um Deus vivo. É o Deus verdadeiro, mas também é o Deus de amor efetivo. “Simplificando, poderíamos dizer que o Cristianismo convenceu pela união da fé com a razão e pela orientação da atuação para a caritas, para a ajuda com amor aos que sofrem, aos pobres e aos fracos, acima de todo limite ou condição”[5].

Entretanto, agora cabe uma pergunta decisiva, pergunta lançada por Ratzinger mesmo: Por que essa poderosa síntese entre fé, razão e vida, operada pelo Cristianismo, síntese que no passado convenceu, hoje não convence mais? O que mudou? O Cristianismo? O homem? A razão?

Ratzinger não titubeia ao reconhecer que o que mudou foi a concepção de razão. O homem, encantado pelos resultados das ciências empiriológicas, fez da razão científica o modelo de racionalidade tout court. E as grandes questões que ultrapassam a possibilidade da resolução empírica foram relegadas a questões sem sentido, insolúveis ou inatingíveis. Assim, a verdade, no âmbito metafísico e religioso deixou de ser buscada. A convicção atual, que já se tinha feito presente num dos maiores representantes do neoplatonismo, Porfírio, é a de que omne verum latet – a verdade está oculta. Nesse sentido, todas as religiões seriam equivalentes, cada qual sendo uma expressão da busca do divino que não se deixa apreender totalmente por ninguém.

Ratzinger reconhece, portanto, que o Cristianismo está em crise. E a crise do Cristianismo está ligada à crise da verdade, pela qual passa o nosso tempo. Ratzinger, neste ínterim, aproxima-se das posições de Flores d’Arcais, uma vez que ambos constatam que o Cristianismo de nosso tempo não quer enfrentar o problema da verdade. Quer, muitas vezes, ser a religião das emoções e do sentimento. Mas uma religião das emoções passa ou muda de figura, tanto quanto as próprias emoções. Uma religião que está meramente a serviço do agradável ao homem, não serve para muita coisa.

As posições de Ratzinger e Flores d’Arcais se distanciam porque Flores acredita que a religião jamais poderia “provar” sua verdade, e, assim, se a religião se dispõe enfrentar a questão da verdade, ela mesma se excluiria do campo do verdadeiro para se refugiar no puro fideísmo – sola fide ou credo quia absurdum. O propósito de Flores é exatamente o de reduzir o Cristianismo ao mero campo da opinião privada. Ele deveria viver só da fé e deixar de se propor como culminância da razão. Deveria renunciar a qualquer atração mundana de poder e de honra para viver da fé pura, cujo conteúdo de modo algum valeria para o âmbito social. A fé deveria renunciar a exercer qualquer influência na sociedade. Nesse sentido, a ética cristã, que, por exemplo, milita contra o aborto e a eutanásia, não poderia se impor à sociedade como tal, por pertencer tão-somente a quem tem fé. O Cristianismo atual deveria aprender com o Cristianismo das origens, o qual, segundo Flores, não tinha pretensão alguma de apresentar-se coerente com as exigências racionais. Flores d’Arcais sustenta que para Paulo, representante exímio do cristianismo das origens, a fé seria escândalo para a razão.

Já Ratzinger, professando firmemente que o Cristianismo é a religião que vence o mundo das religiões justamente por pretender estar de acordo com a racionalidade, defende que a ética cristã, em boa medida, é a ética racional, à qual o homem deveria chegar raciocinando. Ser contrário ao aborto e à eutanásia é uma posição que vale para todos os homens, na medida em que usam a razão.   É claro que Ratzinger reconhece que existe um proprium cristão que ultrapassa as capacidades da razão humana, como o mistério da Encarnação do Verbo, a Trindade, a Cruz e a Ressurreição. São os mistérios da fé. Não podem ser provados pela razão. Todavia, Ratzinger defende que tais mistérios não são contrários à razão, mas, transcendendo-a, estão numa certa linha de continuidade racional. Não são irracionais, mas suprarracionais. O mistério da Cruz, por exemplo, não obedece à pura lógica racional, não pode ser deduzido, mas também não contradiz a razão. Ao contrário, o mistério da Cruz, fala do homem todo, que é razão e coração. A sede humana de um amor incondicional encontra na Cruz a resposta mais eloquente. E a razão, embora não possa deduzir o mistério da Cruz, vê nele aquilo por que ansiosamente esperava.

A meu ver, o debate entre Ratzinger e Paolo Flores tem seu epicentro na concepção de razão. Se a razão é apenas razão científica, ao modo das ciências modernas, o Cristianismo, de fato, não pode ser racional. Mas se a razão tem um alcance metafísico, aí sim, abre-se a possibilidade de o Cristianismo ser também a religião da razão, como quer Ratzinger.

O filósofo jesuíta brasileiro, Padre Vaz, autor que ultimamente tenho estudado com afinco, dedica brilhantes reflexões sobre a temática. Padre Vaz tornou-se, sobretudo em seus últimos escritos, um ardoroso defensor da metafísica e da sua possibilidade ainda hoje, apesar de todos os Hume, de todos os Kant, de todos os Freud, de todos os Monod… Isto é, apesar da tradição cética e ateia defendida por Paolo Flores. Se não há a metafísica, ensina Padre Vaz, a física torna-se a filosofia primeira, o que é uma grande pretensão. Não é a isso que hoje assistimos? A pretensão das diversas ciências particulares de dar a última palavra sobre o real? O alcance metafísico da razão hoje não é dogmaticamente negado? Mesmo quem nega a metafísica, acaba inconscientemente fazendo metafísica, ensina Padre Vaz.

Ratzinger também não vê como negar que o mundo seja a expressão do Logos universal que permeia todas as coisas. De duas, uma: Ou o Logos precede a tudo e em tudo imprime sua racionalidade, de modo que a razão humana seja uma expressão do Logos; ou o Caos precede a tudo, e a razão nasce do Caos. Mas só se pode explicar o Caos racionalmente. Só se pode reconhecer o Caos pela razão. Eis, pois, a contradição com a qual inevitavelmente se choca todo aquele que pretende tirar o Logos do princípio, substituindo-o pelo Caos. O Cristianismo opta pela prioridade do Logos – No princípio era o Logos. “Pode, pergunta Ratzinger, a razão renunciar à prioridade do racional sobre o irracional, à existência original do logos sem se destruir a si mesma? A razão não pode fazer outra coisa a não ser pensar também sobre o irracional a seu modo, isto é, de modo racional, estabelecendo, assim, implicitamente de novo a questionada primazia da razão”[6].

Padre Elílio


[1] P. 103. [2] Ibid. [3] P. 106. [4] P. 109. [5] P. 16. [6] P. 20

 

Padre Vaz, grande filósofo brasileiro


Nascido em Ouro Preto (MG) em 1921, Henrique Cláudio de Lima Vaz ingressou na Companhia de Jesus em 1938. Fez os estudos filosóficos em Nova Friburgo (RJ). Tendo concluído com sucesso o curso de filosofia, foi enviado, em 1945, a Roma para estudar teologia. A ordenação sacerdotal veio aos 15 de julho de 1948, após o que foi completar sua formação religiosa em Gandia, na Espanha. Voltando a Roma, defendeu, em 1953, sua tese de doutorado em filosofia na Pontifícia Universidade Gregoriana com o título Sobre a contemplação e a dialética nos diálogos de Platão. Depois que retornou ao Brasil, aqui permaneceu até a morte. Dono de uma inteligência clarividente e de uma enorme capacidade para o trabalho intelectual, atuou ininterruptamente, por quase 50 anos, no magistério universitário, seja na Faculdade de Filosofia da Companhia de Jesus em Nova Friburgo (1953-1963), Rio de Janeiro (1975-1981) e Belo Horizonte (1982-2001), seja nos cursos de graduação, mestrado e doutorado do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (1964-1986).

A inegável vinculação de Padre Vaz com a metafísica clássica não lhe impediu de mergulhar nas questões da filosofia e da cultura moderna. Sua formação no seio da Companhia de Jesus foi decididamente aristotélico-tomista. O texto adotado para os estudos, a Philosophia scholasticae summa, de V. Remer, S.J., encaminhou-lhe os passos para a frequentação direta “das duas fontes mais ricas do pensamento ocidental”[1], Aristóteles e Tomás de Aquino. Padre Vaz, contudo, já nos tempos de simples estudante de filosofia, aproximou-se, de alguma maneira, das questões modernas, seja pelo interesse por autores dotados de uma aura de modernidade, como Sertillanges, Rousselot, A. Forest, J. Maritain, E. Gilson e J. Maréchal; seja pelo interesse nele despertado pelo seu admirado mestre, o Padre Xavier Roser, S.J., para com a significação filosófica da ciência moderna, problema que sempre foi objeto de suas reflexões. Nos fins dos anos do curso de filosofia, cresceu a sua aproximação para com J. Maréchal, cujos cinco “cadernos” da sua grande obra O ponto de partida da metafísica foram diligentemente estudados, o que resultou em dois trabalhos no fim do curso: o De ratione existentiae Dei probandae in dynamismo intellectuali Pe. Maréchal, e a dissertação para a Licença: A afirmação do ser no limiar da metafísica.

Estudante de teologia em Roma, Padre Vaz entrou em profícuo contato com a nouvelle theologie, que significava um reverdecimento do velho tronco da teologia, a ponto de confessar que “os maiores estímulos intelectuais desses anos de estudos teológicos em Roma vinham da obra do Pe. Henri de Lubac. Foi por seu intermédio que me entreguei com ardor à leitura de Maurice Blondel […][2]”. A grande questão levantada pelo Pe. Henri de Lubac era o problema do sobrenatural, que tratava dos temas da realização humana, do desiderium naturale videndi Deum e do dom que representava a mensagem cristã. Nesse tempo, Padre Vaz encontrou-se também com o pensamento do Pe. Teilhard de Chardin. No campo especificamente filosófico, os anos de Roma levaram ainda ao estudo denodado dos diálogos de Platão, cujas posições, como lhe ficara claro a partir da reflexão sobre o problema do sobrenatural, marcaram indelevelmente as estruturas mentais do Ocidente. Foi desse interesse por Platão que nasceu sua tese doutoral, da qual já se falou. Foi ainda nos anos estudantis de Roma que se deu o encontro com o existencialismo francês, que o absorveu na leitura dos textos de Sartre, de máxima atualidade na época. Padre Vaz admite que o encontro com Sartre foi, de certo modo, desconcertante para quem se formara dentro dos sólidos muros da ontologia, cuja ordem e finalidade reivindicadas para a realidade contrastava com o absurdo, fruto da iniciativa néantisante do pour-soi. Padre Vaz, contudo, leu Sartre com a atitude crítica de quem dele se aproxima com os olhos tomistas de Maréchal e confessa que “dessa crítica ao existencialismo de tipo sartreano nunca voltei atrás […]”[3]. Ainda “naqueles anos do após-guerra, em que tudo se questionava, tudo se julgava possível, mas sobre os quais pairava o obscuro pressentimento de um novo ciclo de crises mais profundas e mais decisivas”[4], outra descoberta foi de capital importância para o jovem Henrique Cláudio de Lima Vaz. Trata-se da obra de E. Mounier e do personalismo que ele representava. Foi à luz do personalismo, desconhecido no seu período de formação escolástica, que Padre Vaz passou a encarar os problemas do mundo moderno em seus aspectos políticos e sociais, e foi através do personalismo que se deu o seu primeiro contato como marxismo. Doravante, a sua leitura crítica de Marx estaria marcada pelo crivo do personalismo.

De volta ao Brasil em 1953, Padre Vaz, sem deixar o ensino universitário, dedicou-se, nos primeiros anos, aos diálogos de Platão. Em 1954, publicou na revista Verbum uma célebre conferência, feita em 1953, sob o título Itinerário da ontologia clássica, que, segundo seu próprio testemunho, “pode ser interpretada como a reconstituição do meu próprio itinerário pelos caminhos do pensamento clássico, de Platão a Santo Tomás […]”[5]. Nesse texto, Padre Vaz eleva-se às alturas da metafísica tomásica do esse, interpretada qual “suprassunção” das conquistas de Platão e Aristóteles. Na verdade, a metafísica tomásica do esse será um dos pilares do pensamento vaziano.

Em seguida, a partir de 1955, quando o pensamento neoescolástico já estava em franco declínio, Padre Vaz passou a interessar-se com mais afinco pela filosofia moderna, e a ela se dedicou com empenho invejável, passando por Descartes, Espinosa e Kant, até chegar a Hegel. Nenhum dos grandes problemas levantados pelos modernos pareceu-lhe indiferente. Mas essa dedicação de Padre Vaz ao pensamento moderno não o levou a “desconstruir” o que recebera dos estudos da filosofia clássica, como se pode constatar pela leitura de seus textos. Ao contrário, a frequentação dos modernos, sobretudo o seu diuturno diálogo com Hegel, ajudou-o a levar adiante a empresa de uma fidelidade crítica e criativa às grandes intuições dos clássicos, sobretudo de Tomás de Aquino, que permanecerá incontestavelmente seu autor preferido.

O teor de vida de Padre Vaz sempre se caracterizou por ser discreto e retirado, com exceção dos “primeiros anos da década de 60, quando se tornou, quase à sua revelia, o mentor da Juventude Universitária Católica (JUC) e, posteriormente, da Ação popular, na sua primeira fase”[6]. Esses anos constituíam um período de efervescência política e polarização ideológica. Padre Vaz, contrapondo-se a uma visão fechada ao mundo moderno, proporcionou, com seus artigos sobre o Cristianismo e a consciência histórica, uma lufada de ar renovado a uma geração de cristãos que se sentia asfixiada por uma tradição alheia aos desafios políticos, sociais e culturais do seu tempo. As suas posições de então refletiam um certo otimismo para com a modernidade, que mais tarde seria criticado por ele mesmo. Nesses tempos, o confronto com Marx foi inevitável – e se deu à luz do império da filosofia de Hegel, do qual o pensamento de Marx era considerado por Padre Vaz uma província -, já que o marxismo, qual canto de sereia, exercia uma sedução tentadora sobre muitas inteligências jovens, propondo soluções revolucionárias, rápidas e radicais[7]. Padre Vaz, na ocasião, soube ressaltar a originalidade da consciência, negada por tendências marxistas que defendiam a “consciência-reflexo”, e afirmar a abertura constitutiva do homem à transcendência, sem se colocar no lugar dos fáceis anátemas de uma posição conservadora. Tinha, na verdade, uma atitude intelectual firme, mas sensível e aberta ao diálogo com a cultura contemporânea. A saída de Padre Vaz de Nova Friburgo em 1964, após o que se dirigiu para Belo Horizonte e ingressou-se na Universidade Federal de Minas Gerais, esteve relacionada com o contato que mantinha com os dois movimentos supracitados.

Em 1970, quando se celebrava o segundo centenário do nascimento de Hegel, Padre Vaz houve por bem reencontrar-se com Hegel e, com um grupo de alunos e professores, entregou-se a um estudo sistemático dos principais escritos hegelianos. “O encontro, ou reencontro, com Hegel em 1970 fez-me perceber uma profunda afinidade das minhas preocupações filosóficas com alguns aspectos do pensamento de Hegel”[8]. Com efeito, esse encontro mais profundo com Hegel representou para Padre Vaz uma dilatação de seus horizontes filosóficos, sobretudo por uma melhor inteligência do método dialético e pela releitura da metafísica clássica levada a cabo dentro dos quadros da Ciência da Lógica. O método dialético aparecerá imponente nas duas grandes obras sistemáticas de Padre Vaz, a Antropologia filosófica (2 vols.) e os Escritos de filosofia IV e V, que compõe uma introdução ao estudo da ética. O seu último livro publicado, os Escritos de filosofia VII, trará uma leitura da metafísica tomásica do esse em chave dialética, que, partindo da intuição protológica do ser como ato, que se opõe somente ao nada, procura explicitar dialeticamente as suas implicações.

Os escritos mais recentes de Padre Vaz mostram uma consciência aguda da crise da civilização ocidental, civilização em vias de tornar-se a primeira civilização planetária, que, dotada de uma capacidade enorme de produção material, ressente-se da falta de sentido e de valores que a orientem. Principalmente nos textos recolhidos em Escritos de filosofia III (publicados em 1997) e Escritos de filosofia VII (último livro que Padre Vaz fez publicar, em 2001, ano anterior à sua morte), Padre Vaz mostra-se um grande crítico dos rumos que a modernidade vem assumindo em virtude da rejeição da transcendência e da atribuição ao sujeito finito da matriz de toda inteligibilidade. A crise de sentido e a crise ética são o resultado mais patente das opções culturais que têm marcado nossa civilização. As diversas formas de niilismo decorrem da negação do ser, da verdade e do bem. É justamente nesses dois livros que acabamos de evocar que Padre Vaz reivindica uma “volta à metafísica”, e é aí que sua admiração pelas grandes intuições de Tomás de Aquino, relido ou “rememorado” à luz dos desafios atuais, torna-se sobremaneira manifesta.

Padre Elílio


[1] VAZ, Henrique C. de Lima. Bio-bibliografia. In: PALÁCIO, Carlos (org.). Cristianismo e história. São Paulo: Loyola, 1982, p. 416.

[2] Ibid, p. 419.

[3] Ibid.

[4] Ibid.

[5] VAZ, Henrique C. de Lima. Bio-bibliografia. In: PALÁCIO, Carlos (org.). Cristianismo e história, p. 421.

[6] MONDONI, Danilo. P. Henrique Cláudio de Lima Vaz, SJ. Síntese, vol. 29, n. 94, 2002, p. 149.

[7] Cf. Ibid, p. 150.

[8] NOBRE, Marcos; REGO, José Márcio. Conversas com filósofos brasileiros. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 30.

Ser de transcendência


O ser humano é, indubitavelmente, um ser de transcendência. A palavra transcendência vem do latim trans (além de) e ascendere (subir), de modo que sua etimologia dá-nos a ideia de uma transgressão de limites, de um ultrapassar, enfim, de uma saída de uma posição dada, uma subida em direção a. Com efeito, à diferença dos brutos, o ser humano não se contenta com o que está dado, mas deseja sempre alcançar o que julga lhe faltar, e isso indefinidamente. Experimenta uma ausência, que o coloca em movimento à procura de plenitude, à procura do infinito. Bem ao contrário, os animais ditos irracionais não experimentam ruptura com o que está dado, já que o instinto encarrega-se de lhes garantir satisfação plena. Vivem plenamente aconchegados no mundo da natureza.

Qual seria a razão da ruptura do homem com o que está dado, com o mundo da natureza? Ao longo da história do pensamento humano, várias foram as doutrinas que se candidataram a responder a tão intrigante questão, desde aquelas que veem no homem um animal doentio por causa do afrouxamento dos instintos até aquelas que lhe reconhecem uma dignidade ímpar entre os seres, a dignidade do espírito. É a esta corrente, reconhecedora do espírito, que nos filiamos. Só o espírito é homólogo ao ser como tal em sua infinitude e absoluta universalidade.

Como quer que seja, é fato incontestável que o homem transgride o mundo natural, e, na medida dessa transgressão, constrói cultura, faz história. A religião, a arte, a filosofia, as ciências e as técnicas compõem o grande arco da história humana e, como tais, estão a testemunhar que o ser humano é capaz de transcender-se, de ultrapassar-se. Já constatava sabiamente Blaise Pascal que “o homem ultrapassa infinitamente o homem”.

Padre Elílio

Santo Agostinho e o filosofar na fé


Agostinho pertence ao período patrístico (séc. II-VIII), época em que certos cristãos doutos (chamados “Padres da Igreja”) elaboraram a sistematização da doutrina pregada por Jesus, consignada por escrito no Novo Testamento e confiada à custódia da Igreja. Essa sistematização se deu sob o embate provocado pelo encontro da mensagem bíblica e a filosofia grega. Os Padres da Igreja serviram-se de categorias da filosofia grega e mesmo de certas teses filosóficas para transmitir e tornar compreensível no mundo greco-romano, sem comprometer seu conteúdo, a doutrina religiosa de Jesus e da Igreja. Desse grande encontro entre cultura bíblica e grega nasceu nossa civilização ocidental, assinalada pela proposta da mensagem cristã e pelo ideal grego da razão. Santo Agostinho representa a experiência mais bem sucedida desse encontro. A sua obra constitui a base cultural de nossa civilização, informando-a até nossos dias.

De pai pagão e mãe cristã, Agostinho nasceu em Tagasta (África) em 354 d.C. Estudou retórica em Cartago, ensinou em Tagasta, Cartago, Roma e Milão. Aventurou-se por todos os lados na busca da felicidade. O que o fez despertar com ardor para a filosofia e para a busca da “sabedoria imortal” foi a leitura do Hortensius de Cícero. Finalmente, encontrou o que procurava no Cristianismo; foi batizado em 387 por Santo Ambrósio. Serviu à Igreja como padre e zeloso bispo; publicou inúmeras obras em defesa da fé e contra os hereges.

O filosofar de Agostinho realizou-se no clima da fé. A fé propõe a verdade que tem a garantia do próprio Deus infalível: “Não devo afastar-me da autoridade de Cristo porque não encontro outra mais válida”. A fé, entretanto, não elimina a razão. A fé, aliás, é um cogitare cum assensione (pensar assentindo). A fé convida a inteligência a trabalhar, e a inteligência, por sua vez, clarifica e fortalece a fé, desenvolvendo argumentos em seu favor. Fé e razão não se contradizem, mas são complementares.

Notável é a metafísica da interioridade que Agostinho constrói, cujo dinamismo se move das coisas exteriores para o interior da alma e desta para Deus. Agostinho diz que julgamos que certas coisas são mais verdadeiras do que outras. Essa capacidade de discernir um mais e um menos nas coisas está no interior da alma que, por sua vez, se vê iluminada por uma regra, pelo Máximo. Tal regra não se confunde com a alma, mas está acima dela, já que julga e controla a própria alma. Essa Verdade presente ao espírito é, em última instância, o reflexo do próprio Deus, Princípio Eterno da Verdade.

Além desse argumento em favor da existência de Deus (conhecido comoteoria da iluminação), Agostinho desenvolve outros, tais como: a) A ordem do mundo exige um Ser Inteligente que o tenha ordenado.  b) O consensus gentium (o acordo dos povos): todo homem, chegado ao uso da razão, reconhece a existência de Deus: “Excetuando alguns homens, cuja natureza é corrupta, toda espécie humana confessa que Deus é o Criador do mundo”. c) Os graus de beleza que vemos no mundo impelem-nos à consideração da Beleza em Si, que é Deus. Condição indispensável para aproximar-se dessa Beleza Imutável, ao lado da graça divina, é o abandono dos vícios e a pureza de vida. Agostinho lamenta não se ter aproximado d’Ela antes: “Tarde te amei, ó Beleza tão antiga e sempre nova”.

Platão dizia que as ideias do hiperurânio são as formas arquetípicas de todas as coisas. Agostinho sustenta que essas ideias de que fala Platão estão no pensamento de Deus como Razão eterna das coisas, pertencem ao Verbo de Deus, Palavra Viva pela qual tudo foi criado. Agostinho distingue o criar, o gerar e o fazer. Criar é produzir algo do nada (ex nihilo): criar compete só a Deus, que produziu este mundo sem matéria preexistente, mas tão-somente pelo seu poder infinito. Gerar é produzir algo da mesma natureza de quem produz (ex.: o pai gera o filho). Fazer ou fabricar é produzir algo a partir de uma matéria já existente (ex.: o carpinteiro faz a mesa a partir da madeira, mas não a cria, porque não a tira do nada).

O tempo, segundo Agostinho, só começa com a criação. Isso significa que o tempo nem sempre existiu. Sendo Deus imutável por definição, não se pode falar de tempo (um antes ou um depois) em relação a Ele; a categoria correta para falar de Deus é a eternidade (a permanência no ser); assim, só Deus merece o nome de Ser, já que não muda. O tempo está ligado ao movimento. A alma é quem o percebe como memória (passado), intuição (presente) e esperança (futuro).

A liberdade é a capacidade de agir conforme o bem. Só existe liberdade segundo a verdade. Só é livre quem faz o que deve ser feito. O homem, porém, por si só, não é capaz de fazer o que deve ser feito, de agir conforme o bem; sua natureza é fraca, está corrompida pelo pecado. Ele precisa de uma ajuda, e essa ajuda é exatamente a graça de Cristo. A graça fortalece nosso livre-arbítrio (faculdade de escolher) e o encaminha para a escolha do bem e, em suma, do Bem Soberano, que é Deus, tornando-o livre. A graça liberta o livre-arbítrio e o torna capaz de eleger o Bem. Só Deus é o Bem propriamente dito; só Ele não passa nem caduca; é o Bem e a Verdade subsistente cujo sacramento é o Cristo; só Ele é capaz de preencher a sede do Infinito que habita o homem: “Fizeste-nos para ti, Senhor, e o nosso coração estará inquieto enquanto não repousar em ti”.

Lição de Agostinho: convite a que o homem ultrapasse o mundo do temporal e das necessidades diárias e atinja o seu verdadeiro centro: o Eterno, o Imutável, o Absoluto, Deus (que se nos revela em Cristo, o sinal no tempo do Eterno). Só a partir desse centro o homem poderá dar sentido a este mundo que passa. A partir do Eterno, as nossas atividades mais comezinhas adquirem significado, e o nossa vida atual enche-se de vigor.

 

Padre Elílio de Faria Matos Júnior